domingo, 18 de abril de 2010

Entrevista para o Paulicéia do Jazz

1. Como surgiu a idéia de gravar o "5°" com dois bateristas?

Fiz uma sessão em trio, com o Bruno Migotto e o Waguinho Vasconcelos, no Estúdio Cantareira em 17/9/2009, captada pelo técnico Ricardo Marui. Dessa sessão aproveitei duas músicas que estão no CD: “3 Notas” e a faixa bônus em vídeo “Blues de Ocasião”. Depois dessa, fechei a data 30/10/2009 pra gravar a segunda sessão no auditório da EM&T. Faltando uma semana, eu tive a idéia de chamar o Bruno Tessele, baterista que já conhecia a maioria das músicas porque estava conosco na fase inicial desse trabalho, já com o Migotto no baixo inclusive.

Quis duas baterias pela massa sonora e pra experimentar, porque nunca havia feito até então. Isso pode ser considerado até um diferencial, já que poucos gravaram com essa formação nesse tipo de som no Brasil. Mas, para mim, importa o som. E um fato interessante: o Waguinho e o Tessele não se conheciam; conheceram-se apenas no momento de gravar. Por isso, o que se ouve é fruto do momento mesmo: todos tocando, se ouvindo e reagindo, sem nada combinado previamente.

2. Mais uma vez foi possível perceber a pureza do som dos instrumentos ao ouvir a gravação e não ter tantas interferências daqueles efeitos mascarados" de gravação. Como é gravar um CD no auditório e não no estúdio?

Esse disco foi mixado e masterizado pelo Flávio Tsutsumi e por mim. Fiquei muito satisfeito com o som também. E, de fato, não tem nenhuma interferência de efeitos: o que se ouve é o som natural que aconteceu nas salas onde gravamos, sem maquiagens. E, ao contrário da maioria dos CDs feitos hoje, você pode aumentar bastante o volume que não terá a sensação de ter algo estourando. Faça a experiência.

Para mim não tem nenhuma diferença gravar num estúdio ou num auditório, porque o processo é sempre o mesmo: todos tocam juntos, ao mesmo tempo e sem correções posteriores. É ao vivo realmente, só que, no caso, sem platéia. Para mim esse método é muito mais propício para que a música aconteça.

3. Interessante ver a capa do CD ,criada pela artista Cinthia Crelier e a forma como foi escrita o encarte. É a sua letra? E de onde surgiu a ideia de escrever com a sua própria letra? Fale um pouco da artista que fez a aquarela.

A Cinthia é uma amiga cuja casa freqüento com a minha família há doze anos. Sempre gostei das pinturas dela e combinamos desde o Michel Leme & A Firma, o CD anterior, que este disco teria na capa algum trabalho dela. Então, para que ela pintasse a capa, enviei a mix (que é o que tinha no momento) pra que ela ouvisse o som enquanto pintava. Fiquei muito feliz com a possibilidade da coisa ser feita assim e acho belíssima a aquarela.

Fiz a arte do CD junto com o Flávio Tsutsumi também e a letra que se lê no encarte, na capa e na contracapa é a minha mesmo. Estava querendo fazer isso há algum tempo, acho bonito e gostei muito de ver como ficou; é uma “fonte” caseira; imperfeita, mas única.

4. Muito legal ver as dedicatórias a cada música que você compôs: "3 notas" - "para todos que entram em contato comigo", "Samba dos Excluídos", para todos que fazem arte de forma sincera" e "Ananda Moy Ma" - "para os buscadores da verdade(que está acima das religiões)". Fale um pouco sobre essas dedicatórias.


Acho legal, em algumas oportunidades, trazer algo a mais para a música que está gravada dedicando a alguém.

De fato, a única composição que já nasceu dedicada foi “Ananda Moy Ma”. Esta música nasceu ao vivo, foi composta na hora, numa das primeiras transmissões da TV Cia da Música, no que viria a ser o Programa Michel Leme & Convidados. Foi uma experiência maravilhosa. A dedicatória, além da própria homenagem à santa da Índia que está no título, é para as pessoas que buscam a evolução.

Quanto ao “Samba dos Excluídos” e à sua dedicatória: se você é realmente sincero no que faz, sem fins puramente mercantilistas, automaticamente está excluído do que as pessoas julgam ser “O” meio artístico. E, de minha parte, adoro ser um excluído nesse sentido! Acho digníssimo fazer parte do que chamam ‘underground’ e estar fora, conscientemente, do mainstream. Estar fora dessa sujeira que é a Indústria Cultural e todo e qualquer esquema de massificação é uma bênção. Não faço música pra servir de fundo musical e/ou agradar a quem quer que seja; não procuro me “adequar”; não me associo aos que fazem uma musiquinha de mentira para inserir-se; escolhi dormir tranquilo todas as noites e ser livre pra tocar o que acredito.

“3 Notas” é uma das composições mais recentes e rápidas em vários sentidos: nasceu rapidamente e tem um andamento bem rápido. Dediquei às pessoas que curtem o som e entram em contato pela internet, trocando idéias que me ensinam muito. Minha homenagem e agradecimento a elas.

5. Por que essa frase final "Eu sou tudo o que você achar que sou", Ananda Moy Ma ?

A primeira vez que li algo sobre Ananda Moy Ma foi no livro “Autobiografia de um Iogue” de Paramahansa Yogananda. Num capítulo, ele narra encontros que teve com ela, a quem ele descreve como “saturada de bem-aventurança”. Depois, li esta frase atribuída a ela “eu sou tudo o que você achar que sou” e achei muito bela, por ter um significado que responde a questões como “o que esperam ou pensam de mim?” e coisas do tipo. A preocupação com o que os outros pensam a respeito da gente é uma grande besteira que só nos limita e confunde. Por isso fiz questão de destacar essa frase, ela traz um conteúdo libertador.

6.A lista de agradecimentos é bem interessante e tem a sua cachorrinha Pitty" e o Celso Childs, o cara que sabe usar as palavras, o "Leão-Brilho". Normalmente os encartes são tão formais e vc simplesmente "quebrou" paradigmas. Como foi a ideia?

A Pitty é nossa cachorra amiga há dois anos e pouco. Quem tem um cachorro sabe que é assim, eles se tornam nossos amigos queridos. Então, achei natural agradecê-la. E ela gosta muito de música também; se está rolando um som ela chega, deita e relaxa – e, assim, acaba ouvindo coisas muito boas!

Celso Childs é uma inspiração para vários amigos músicos e para mim também. É um cara que tem o dom da poesia e que adora o jazz em todas as suas formas. Ele é meio retirado e misterioso, mas merece o agradecimento.

7. Pude conhecer muitos músicos neste um ano de blog. E vejo em você um cara corajoso onde teve a oportunidade de atuar como "sideman" de artistas populares e teve a ousadia de romper com a forma e os padrões musicais estabelecidos pela "indústria cultural" onde passou a simplesmente a tocar pelo prazer de fazer a arte de verdade. Conte um pouco dessa sua importante decisão corajosa

Não há heroísmo algum, Luis. Apenas conheci o lado dos “artistas” do mainstream que são contratados de corporações multinacionais e, portanto, aceitam colaborar com o jogo da massificação. Aí escolhi o outro lado, que é o dos artistas que tocam música pelo simples prazer de tocar. O prêmio ou objetivo para o músico consciente é simplesmente tocar. Depois que entendi isso, continuei com minhas aulas para sobreviver e, quando vou tocar, tem que ser música! Música-arte como diria o Heraldo do Monte.

8. O que você, como músico , faria para incentivar a garotada a ouvir música instrumental? Você é a favor das aulas de apreciação musical nas escolas, seja da rede pública ou privada?

A molecada que tem como entrar na internet é muito esperta. Eles vão conhecendo coisas pela curiosidade e vão filtrando de acordo com o gosto. Vejo isso pela minha filha. Mas, enfim, quando se tem a oportunidade de comer, estudar e se informar é mais tranquilo.

O real problema está com a grande maioria da molecada que não tem as mínimas condições ou perspectivas de vida. Acredito que temos que arrumar vias cada vez mais descomplicadas (sem esperar ajuda do sistema) pra levar a música até essas pessoas. Aceito sugestões, por favor.

Alguns chamam a música instrumental de “elitista”, porque, além de ignorar a própria música, ignoram que estão apenas fazendo o jogo do sistema, afastando as pessoas e a si mesmos da possibilidade de vivenciar manifestações artísticas diferentes do “mesmo de sempre” que se vê na tv, no rádio etc. A experiência desmente imediatamente este pensamento equivocado que liga a música instrumental às elites: as pessoas, mesmo as que têm menos grana, ouvem o som, entram na viagem, e, depois, quando é possível trocar idéias, demonstram que captaram o espírito da coisa – muitas vezes com um grau de profundidade muito maior do que os meninos “ricos” e “estudados” da elite captam.

Respondendo a segunda parte da pergunta: sou a favor das aulas de apreciação musical nas escolas em todas as redes. Só que isso nunca vai deixar de ser mais uma esmola do Estado, porque a deseducação do esquema de massificação e dominação vai continuar no dia-a-dia. Existem questões anteriores à educação musical nas escolas, tais como: promover uma distribuição de renda mais justa, melhorar o próprio sistema de ensino etc. A discussão sobre a educação musical nas escolas, por enquanto, só serve pra distrair-nos; enquanto isso, o capital segue atropelando a todos, sem misericórdia.

9. Como é apresentar música instrumental para as pessoas de camadas mais humildes? Já teve alguma experiência assim? Conte alguma:

Já toquei em vários lugares esquecidos pelo poder e sempre é enriquecedor. A música já fala por si só, mas quando as pessoas são tratadas com igualdade, a relação entre quem está tocando e quem está ouvindo flui de maneira muito mais saudável.

Com isto quero dizer que o artista deve se aproximar das comunidades, cultivando uma relação sem máscaras (sendo acessível, sem afetações), e, principalmente, sem querer demonstrar poder com efeitos pirotécnicos, telões, danças apelativas etc. Ou seja, deve fazer música simplesmente, sem as distrações das grandes produções bancadas por multinacionais que visam apenas e tão somente o lucro. O músico não está pra ser adorado; ele está para fazer música e, desta forma, relacionar-se com o coletivo, fazendo o que lhe dá prazer e trazendo cultura à sociedade. A quem escolheu estar ali pra ouvir, resta simplesmente dar-se a oportunidade de ouvir. Estabelecido esse equilíbrio, daí em diante é viver o momento.

Insisto no óbvio, mas que está completamente esquecido na prática: música é pra ouvir e pra tocar.

A Indústria Cultural conseguiu inverter os valores nesse campo, porque precisa de peças substituíveis no seu esquema de produção contínuo. Ela, através da manipulação (comprando a mídia e impondo comportamento e tendências através dela) conseguiu fazer com que os seus marionetes (“artistas/celebridades”) fossem cada vez mais alta e rapidamente rentáveis e, principalmente, substituíveis. Acaba uma modinha, começa a próxima; e assim, sucessivamente.

E ninguém questiona isso porque não tem tempo e nem energias – os baixos salários obrigam a massa a trabalhar mais e a buscar cultura e lazer de menos; o modo de vida imposto pelas classes dominantes suga-nos até a última gota de vida - e nem recursos pra analisar o que está acontecendo de fato - certas leituras, por exemplo, são escondidas e/ou demonizadas para evitar a conscientização.

Como se vê, o cenário não é favorável, mas ainda é possível fazer o esforço de se informar, mudar a cabeça, discutir com pessoas que buscam a evolução e, enfim, buscar um certo equilíbrio no meio disso tudo.

10. Pretende apresentar o seu trabalho fora do Brasil como festivais de Jazz pela Europa e América Latina (Cuba, Barquismeto e outros...)? Há alguma coisa em vista?

Quero muito! Mandaremos material para alguns festivais também e aguardaremos convites e condições dignas para viajar e tocar.

Muito obrigado, Luis!
Longa vida ao Paulicéia do Jazz e um abração a todos!
Michel Leme
www.michelleme.com

(clique no título deste post para ir para a página da entrevista no Paulicéia do Jazz)

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