sexta-feira, 10 de julho de 2009

TRÊS PONTOS

Músicos que ouvem - primeira condição para tocar

Nesse mês que passou, pude fazer sons com as mais variadas pessoas e pude aprender muito com as inomináveis situações musicais que aconteceram. E acredito que estas situações aconteceram pelo simples fato de todos realmente quererem ouvir a música que estava acontecendo no momento, além da disposição em fazer arte coletivamente. Como já disse várias vezes aqui, em se tratando de música improvisada, querer ouvir o outro é condição para que aconteça algo realmente musical. Isso faz com que você tire o foco do eu e se ligue no todo, tornando-se um instrumento da Música - algo inominável, indescritível, e, obviamente, muito maior que todas as ilusões como orgulho, vaidade, auto-promoção, necessidade de aprovação das pessoas, etc.

Cabe dizer aqui que estas ilusões vêm transformando vários seres que até têm o potencial para fazer música em verdadeiros fariseus (hipócritas). Pessoas acometidas por esse mal tocam como quem distribui cartões para divulgar um negócio, destruindo qualquer possibilidade da música acontecer. Alguns deles até têm habilidades e acabam enganando muita gente através de seus ardis. Mas, na minha opinião, ser hábil é algo destituído de valor se não estiver no contexto da música que está acontecendo no momento. Se você treinar um macaco, por exemplo, conseguirá com que ele faça coisas parecidas com as que os seres humanos fazem, pode até fazê-lo tocar escalas numa guitarra, e isso pode até ficar engraçadinho e arrancar aplausos. Mas construir algo musical ainda é algo fora das capacidades dos nossos queridos e simpáticos irmãos símios. Pois bem, é assim que vejo esses fariseus: macacos treinados! Só que com a desvantagem de não possuirem a mesma simpatia e graça dos símios de verdade...

Mas, apesar do ramo da música estar infestado desses "mercadores do templo" (como em qualquer outra profissão), tenho tido a boa sorte de tocar com pessoas que tocam porque realmente precisam tocar, porque amam a música e sentem prazer em atuar coletivamente. Estes fazem com que seja necessário menos esforço no momento de tocar, parece que tudo flui mais fácil, naturalmente. Ao lado deles é possível sentir um espírito de verdadeira colaboração, de ação em conjunto, como se um grupo fosse um só ser em sintonia com a música.

O ambiente conta

Somado a esses raros músicos, o ambiente também colabora, inegavelmente, para o acontecimento da música. Por isso, parei de tocar em vários bares ditos de "jazz" de São Paulo pelos problemas já muito conhecidos de quem toca por aí: o tradicional pedido para diminuir o volume devido à ameaça das multas do Psiu - porque, na maioria avassaladora das vezes, o bar não tem tratamento acústico adequado; o proprietário espertinho que rouba dinheiro dos músicos no couvert artístico; problemas com a falta de continuidade das datas (um som hoje e o próximo pra daqui a seis meses); as conversas intermináveis de pessoas estúpidas que pagam couvert para falar alto e perturbar tanto os músicos quanto as outras pessoas que também pagaram couvert pra ouvir música; etc. Já disse e repito: estou fora dessa! Por isso, procuro tocar em lugares onde as pessoas comparecem para simplesmente ouvir música, que no momento são:

Auditórios de escolas:

- todas as quintas na Cia da Música, onde toco no programa Michel Leme & Convidados;
- na Virtuose, onde toco um sábado por mês;
- no Souza Lima Moema, também um sábado por mês;
- na EM&T, onde faço uma jam session na última quarta-feira do mês;
- no Instituto Anelo em Campinas, onde acontece uma prática de conjunto comigo a cada um mês e meio;

Na rua:

- projeto Toca Brasil, em frente à loja Matic Instrumentos, um sábado à tarde por mês também;

Nestes lugares, onde o glamour das grandes produções passa longe, há a oportunidade de simplesmente tocar livre - ou tocar o que a música pede. Além disso, é possível trocar idéias com as pessoas que comparecem. Eu costumo conversar com várias delas e aprendo muito com suas histórias de vida. É uma troca real, enriquecedora.

Sem máscaras

Nos lugares citados acima, há um número mais modesto de pessoas assistindo em virtude dos espaços serem menores que os espaços ocupados pelos eventos que têm divulgação nos jornais, rádios e tvs, por exemplo. Mas essa proximidade, a troca de idéias - sobre temas variados como a manipulação por parte da mídia, a arte separada do cotidiano das pessoas, os métodos de ensino equivocados que algumas instituições impõem, as alternativas pra ficarmos ilesos a esse estado imbecilizante de coisas, etc. -, somados à real possibilidade de fazer música, fazem a relação artista/público ter uma conotação muito mais viva, estimulante e profunda.

E quando o som acontece sem artifícios, máscaras ou gestos heróicos, todos ficam mais à vontade. Isto facilita tanto a própria assimilação da música quanto a troca de idéias. Em lugares como estes que citei não há tentativas de desviar a atenção das pessoas em relação à música, tais como efeitos especiais, bases pré-gravadas, dançarinos, show pirotécnicos e coisas do tipo; o que temos são simples encontros de pessoas que gostam de tocar com pessoas que gostam de ouvir. E essa maneira mais humana de se relacionar deixa todos numa posição de maior igualdade, ao contrário do que acontece no 'showbizz', onde o artista é colocado numa posíção de superioridade, como um "semideus intocável".

Para mim, essa igualdade é o ideal. Ela faz com que o ato de tocar e de reunir as pessoas tenha propósitos e resultados cada vez mais nobres, edificantes, verdadeiros. Penso que a arte nunca deixará de ser arte, ela simplesmente é; o Homem é que precisa estar em condições de entrar nesse reino. Mas quando há a menor tentativa de lucrar ou de se adequar a um status quo, já não há mais arte. E o "toque de Midas" às avessas da "grande mídia" e das corporações também é infalível neste ponto: eles têm o poder de apodrecer tudo aquilo em que tocam, sugando a essência das coisas e vendendo suas embalagens mortas. Por isso, é melhor estar longe tanto do egocentrismo quanto desse "esquemão" que inclui táticas abomináveis como jabá, tráfico de influência, massificação, etc. Arte não tem a ver com isso, e nunca teve! Se há massificação o que se tem é um produto para consumo e a censura da expressão artística. Ponto. Por isso digo que é melhor fazer um som para pouquíssimas pessoas, mas que sejam as pessoas que realmente ouvem a música - e por vontade própria (que sejam poucas, mas que sejam as certas...).

Resta-nos descobrir e/ou inventar novos espaços e meios para que o artista possa expressar-se sem restrições, sem almejar nada que não seja simplesmente exercer a sua arte dignamente, sem artifícios ou manobras visando o estrelato ou lucro. Isso elimina todo o farisaísmo e toda a intromissão abjeta de corporações, atravessadores, instituições ou da mídia vendida... É necessário, cada vez mais, ter o artista fazendo o que ama perante as pessoas, da forma mais livre e mais próxima quanto for possível. Sem máscaras... Aí não tem como mentir.

37 comentários:

Rafael Nery disse...

Excelente texto Michel...
O brasil seria muito melhor se todos os músicos pensassem desta forma e não simplesmente objetivassem só a recompensa...
a arte sempre deve vir primeiro!

Michel disse...

Obrigado, Rafael!
Abração e manda brasa no Guitar Clinic!

Thiago Alves disse...

Isso aí, Michel! Sou seu fã! Além da pessoa super querida, fala a verdade! Gente e músico de verdade!

Abraço

Michel disse...

Valeu, Thiago!
E vamos tocaaaaaarrrrr!
Abraço,
Michel

Vanessa F. [baixista - EMT] disse...

Oi Michel! Belo texto! Aprendo tanto contigo, voce nem sabe!

Michel disse...

Que bom, Vanessa!
Muito obrigado!
Abração e muito som,
Michel

Unknown disse...

Parabens Michel pela coragem e disposição de lutar "visceralmente" contra este "fariseísmo musical" A grande maioria dos músicos apenas se conformam e se omitem! Que Deus lhe dê muita força e sabedoria para continuar nesta guerra, pois, a sua arte é um bem para a sociedade, tanto a sua música quanto as suas palavras !
Um forte abraço e muita música!

Michel disse...

Amém e obrigado, João!
Abração e muita música,
Michel

Luís Delcides disse...

acho que ao se tratar de música é como Alex Buck disse durante a entrevista que o Paulicéia do Jazz fez na semana passada: " conversa musical e conversa dialogada".
Música não é stress, excessos de ensaios e fundo musical para bêbados conversarem;ela é muito mais.É inspiração, expressão do talento de um ser que deseja expressar toda a sua emoção através dos sons, melodias e acordes tocados naquele momento.

abs,

Michel disse...

É isso aí, Luis!
Obrigado por ler e comentar.
Abração,
Michel

gabips disse...

Michel, muito foda o texto!!!
Além de ótimo músico, ótimas idéias!
E danem-se os hipócritas!

bjs

Michel disse...

Valeu, Gabis!
Rock ON!
Bj,
Michel

Scamurco disse...

Fala brother! Quanto tempo não te vejo!!! Passei pra ler, deixar um abraço e comentar sobre o fato de que a classe musical realmente deveria assumir uma postura de unificação e organização. Sei que pode parece piegas, mas penso que só assim poderemos nos ver livres dos falsos-mecenas e pseudo-fomentadores da música, principalmente a de qualidade. Continue quebrando tudo!!!

Michel disse...

Obrigado, Walter.
Hoje em dia falar de união para uma classe musical acometida pelo egocentrismo do jeito que está realmente parece algo impraticável. Acredito que a mudança deve começar em cada um de nós, e essa auto-realização servirá para transformar o ambiente ao nosso redor. Pelas poucos esforços que fazemos para melhorar, mesmo nas coisas mais simples, já dá pra perceber como isso afeta a quem está próximo. O lance é insistir!
Abração e muito som,
Michel

Anônimo disse...

Sou seu fã!!!
Já te falei que sempre que nos falamos fico 3 meses pensando em tudo e no que eu também estou fazendo para mudar isso...!!!

Abraço!
Abner Paul

Michel disse...

Valeu, Abner!
Toquemos mais!
Abração e muito som,
Michel

Arismar disse...

ISSO MESMO!MAIS SOM E SINCERIDADE COM A MUSICA DA GENTE!!!ESSE É O CAMINHO! O BOM É SABERMOS QUE A HIPOCRISIA NUM TEM DIGITAL!!!VOU TE DIZER QUE EU ACREDITO QUE EXISTA UM PÚBLICO MUITO MUSICAL NO NOSSO IMAGINÁRIO!QUE SE MATERIALIZA TODA VEZ QUE NOS APRESENTAMOS!AONDE SEJA!TEATRO,RUA,IGREJA...NÃO IMPORTA QUAL SEJA A GIG!BAILE,SHOW,BOATE,FESTA DE CASAMENTO,ANIVERSÁRIO DE CACHORRO...O QUE IMPORTA É TOCAR!!!
ABRAÇÃO PRA TI! ARISMAR

Michel disse...

Que maravilha, Arismar!
Aprendi, aprendo e aprenderei muito contigo. Você é exemplo pra todo músico sincero.
E vamos tocar mais!
Um abração,
Michel

Alan Dias disse...

Belíssimo texto Michel! Conseguiu expressar em palavras o sentimento de tantos amigos e músicos que temos por aí!
Um grande abraço!

Stefano Moliner disse...

A sinceridade,a clareza e a energia desveladora e crua deste texto;nada mais é do que tua Música transliterada em palavras vivas!!!!!!!!!!!

louise disse...

oi michel! como todos que comentaram aí em cima, aprendo muito com vc!
beijao!

Gralha Réis disse...

Excelente... Que pensamentos assim se proliferem Brasil afora!
um Forte Abraço!
ÐLjR | GR

Unknown disse...

Fala Michel!!Alem de admirar seu talento musical suas ideias e pensamentos me ensinam,me nutrem e me dão cada vez mais convicção do verdadeiro caminho musical,obrigado por falar por nós.
abç Mario!!!!

Cris disse...

Ao ler seu texto, penso que a música é mais um dos reflexos do mundo que estamos vivendo, onde as pessoas já nao tem paciencia de ouvir, " a história do outro" nao interessa. E Na música é asim também, "Ser estrela" muitas vezes é o que importa, e vendo que só as escolas é que tem espaço pra se dialogar é até compreensível né, pois quem quer aprender, faz essa troca, ouve, "fala", enfim, essencial, dialogar-se, eu entendo um pouqinho dalinguagem cantada em coral, em que pra se cantar sua voz, voce tem que ouvir a voz ao seu lado, ouvíla, decodificá-la e fazer a sua, e se isso acontece tudo fica lindo. Quanto aos números, acho que nao tem importancia que seja muitos né?Uma pessoa já faz diferença, ainda bem que tem gente como voce.Obrigada!

Michel disse...

Queridíssimos Alan, Stefano, Louise, Gralha Reis e Cris:
Muito obrigado!
Continuemos, isso é só o começo.
Abração e muito som,
Michel

Unknown disse...

Sempre bom ler essas coisas que vc escreve!...
Refletir sobre isso é mais do que necessário!

=)

beijos!

Camila Silva disse...

Esse seu texto deveria sair no diário oficial...

rsrs

amei!!!

beijos

Michel disse...

Mario, Vanessa e Camila:
Muito obrigado!
Fiquemos em contato, abração,
Michel

Pedra disse...

Texto sensacional Michel!! Eu agradeço de encontrar na estrada da vida, pessoas como você que acreditam e vibram pela arte sincera. Essa arte sincera, em nossos dias, sobrevive num sistema de guerrilha. Lamentável...

Forte abraço & sonzera eterna!!

Rodrigo Oliveira Hid

Anônimo disse...

Olá Michel...tudo jóia?

Gostaria de dizer-lhe que faz pouco tempo que conheço o seu trabalho, mas com certeza foi o suficiente para admirá-lo. Achei fantásticos os cds: Um, dois, trio e Michel Leme e a firma.

Quero dizer-lhe que grandes coisas Deus tem pra fazer em sua vida e através de ti.

que Deus te abençoe grandemente,

t+,

Osmar

Michel disse...

Amém e obrigado, Rodrigo e Osmar!
Abração e muito som,
Michel

Unknown disse...

Fala Michel, ótimo texto!
Fico grato em poder ter acesso a textos como esse, e poder aprender cada vez mais contigo, é de pessoas e músicos como vc que precisamos ter.
Obrigado mais uma vez!
Grande Abraço

Jônatas Sansão

Michel disse...

Valeu, Jônatas!
Abração e muito som,
Michel

Amandette disse...

DUCA!

Acho que tudo o mais que escrever, tendo em vista tantos comentários que já foram postados, soaria piegas.
Se ouvir sua música é bom, ler o que escreve é melhor ainda. E trabalhar com vc, um grande orgulho!

E f...-se os símios... o que importa é que vc nunca deixe de acreditar na sua música!

Grande beijo,


Amanda

Michel disse...

Muito obrigado, Amandita!
Bjs,
Michel

Leno Nascimento disse...

falou tudo michel o que sentimos por esse sistema que finge gostar de nossa musica. sou de uma cidade com 2.900 habitantes no interior de minas,e digo que nao é mole competir com o que rola na midia por aí,tudo shega muito rapido,mas estou preocupado em levar musica criar e viver pela musica ser musica,temos aqui em nossa MINAS grandes musicos de muita inspiraçao sentimento.tenho curtido demais o seu som!!! espero um dia levar um som com vc,quero um dia ter essa honra,um grande abraço e boas harmonias...

Michel disse...

Obrigado, Lenonascimento!
Fique em contato.
Abração e que nos vejamos nos sons,
Michel