quarta-feira, 5 de março de 2008

O ÁLBUM DO ANO



É curioso ver um disco como "River - The Joni Letters" de Herbie Hancock ganhar o Grammy de "Álbum do Ano" (também ganhou como "Melhor álbum de Jazz Contemporâneo"). Ao meu ver, muitas coisas estão nas entrelinhas deste fato, que inclusive foi destacado como surpresa pela imprensa.

Eu ouvi o disco. É bem tocado, tem bons arranjos, belas harmonias e momentos bons - principalmente por parte do senhor Wayne Shorter, que parece não estar nem aí para a assepsia reinante no CD e faz o "trabalho sujo", ou seja, toca pra c......! E tem as participações das cantoras Tina Turner, Norah Jones, a própria Joni Mitchell (cujas letras inspiraram o projeto todo), Corinne Bailey Rae, e a brasileira Luciana Souza. Na última faixa, Leonard Cohen recita "Jungle Line".

Importante dizer que das dez músicas do disco, quatro são instrumentais. Isso, na minha opinião, é significativo para o gênero, visto que representa 40% de um disco premiado como álbum do ano (independente de ser pelo Grammy ou por qualquer outra instituição). Mas, em se tratando de Herbie Hancock, é um disco muito, mas muito comportado e comercial se comparado a ábuns anteriores - os quais fizeram seu nome tornar-se sinônimo de qualidade.

Mas a questão não é julgar se o disco merece ou não o Grammy. Em primeiro lugar, eu não usaria tal discurso, simplesmente por não dar crédito a uma premiação do tipo "nós fazemos e nós mesmos premiamos o que fazemos". Em segundo lugar, o disco é bom, se comparado ao que vem sendo produzido atualmente nos Estados Unidos da América.

A questão principal é: qual o recado que a indústria fonográfica (ou, por extensão, cultural) está tentando passar por meio desta premiação?

Para mim é claro: "o artista pode ter todo o talento do mundo como compositor, instrumentista, improvisador, arranjador, etc, mas precisará dos artistas que NÓS projetamos para ter sucesso de verdade". É como se isso desse sustentação para argumentos como "só quando o Herbie gravou com a Norah Jones e com a Tina Turner é que conseguiu o prêmio de ábum do ano". É imbecil, mas tem o aval do Grammy!

Ver um artista de excelência como Herbie Hancock ser 'agraciado' com esse prêmio me faz lembrar do cinismo de alguns canais de TV que, sendo obrigados por lei a exibir programas educativos, o fazem, mas às 05 da manhã! Esse cinismo chega no ponto máximo ao observar que o prêmio veio justamente no momento em que o pianista lança seu disco mais adequado ao 'modus operanti' vigente. Ou seja, a oportunidade de fazer a média foi agarrada, antes que o Sr. Hancock grave um outro disco mais radical ou de vanguarda...

Para tentar esclarecer essas manobras da chamada indústria cultural, recorro ao filósofo alemãoTheodor Wiesengrund Adorno (1903-1969), que foi o primeiro a negar o termo "cultura de massas" para criar o termo "Indústrial Cultural", que segundo ele "impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente". Ou seja, o homem, para a indústria cultural, é um mero objeto. Por meio do massacre constante da mídia, ele se torna uma máquina de consumir qualquer coisa. Adorno ainda coloca: "interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a Indústria Cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses".

É importante deixar claro que a massificação conquista o consumidor pela familiaridade, e não pelo gosto. Citando mais uma vez Adorno, no artigo 'O fetichismo na música e a regressão da audição', ele diz: "Se perguntarmos a alguém se 'gosta' de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiríamos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo."

Detalhe: esse texto é de 1938! E traduz exatamente uma coisa que acontece hoje: o ser mais desavisado ouve uma atrocidade no rádio, acha um lixo e ri. Mas, depois de uma semana, já está assoviando a melodia e até a introduçãozinha de teclado... Daí a comprar o disco é um passo! Não me canso de dizer: a cultura genuína não virá até você. O que chega fácil, fácil - os "mais vendidos", os "mais premiados", etc. - é exatamente o que querem que você consuma.

E depois do álbum do ano para Herbie Hancock quem será o próximo contemplado, Sonny Rollins? Ornette Coleman? Acho que não. Só se eles gravarem com alguém como Justin Timberlake ou Beyoncé. Aí sim, existiria um gancho para o prêmio, principalmente por não haver nada que contestasse o 'status quo', mas, sim, que só o valorizasse.

De minha parte, continuo achando graça de quem acredita na importância dessas premiações e, mais ainda, dos artistas que gravam discos com a quantidade mínima de músicas para poderem ser indicados ao Grammy (risos, risos e mais risos).

Fique esperto! Ou assista à próxima cerimônia de entrega...

Michel Leme

*agradecimento a Bruno Bacchi (Single Note Comunicação) pela correção gramatical e contra-argumentação.

11 comentários:

Anônimo disse...

Concordo com você Michel, vivemos nessa cultura de manipulação de massas, onde nem os genius escapam das garras da industria fonográfica.

Parabéns pelo seu blog, sempre muito informátivo, crítico e focado em musica.

Um abraço

Guto

Michel disse...

Obrigado por ler e postar, Guto!
Fique em contato.
Abração,
Michel

Anônimo disse...

concordo plenamente

mas tenho uma visão um pouco otimista quanto ao futuro: com a midia gratuita pela internet é possivel que daqui a uns anos as pessoas nem ouçam mais radios, somente internet, my spaces, downloads... etc e tal... qu assim então os donos do mainstreen perdem sua posse sobre a opinião pública!

Camila (guitar)

Michel disse...

Obrigado, Camila.
A idéia é esperar um futuro melhor, concordo. Mas é importante ficar alerta pra não entrar nas furadas que querem que a gente entre.
Abração,
Michel

Anônimo disse...

Michel,concordo com tudo o que vc disse e vou te fazer um pedido:

-Nunca pare de escrever esse tipo de coisas no seu blog.É Maravilhoso.Eu particularmente sempre leio tudo,mesmo que eu não comente.
Tudo isso é muito edificante e trás crescimento pra todos nós.

Valeu!

Michel disse...

Obrigado!

Sempre que tenho algo a dizer e tenho tempo para elaborar, faço questão de postar aqui no blog. Acho que o diálogo é um meio de aprendermos uns com os outros, pra tentar viver uma vida melhor, cada vez mais longe de sermos feitos de otários por quem quer que seja.

Abraço,
Michel

Unknown disse...

Minha primeira visita ao blog(clickei no link no site da guitar-player).Primeiro lugar,parabéns por sua música e personalidade,não o conheço pessoalmente mas,amigos em comum sempre o elogiam como músico e pessoa.Quanto a Hancok o grammy eoutras premiações do tipo(oscar,emmy,etc) concordo em tudo que disse mas,tem seu lado bom ,dá a oportunidade a pessoas que nunca ouviram falar em Herbie Hancock conhece-lo e ter acesso a toda sua obra(hoje com a net isto ´fácil...)Minha vizinha tem 17 anos, só ouve "funk" carioca,pagode "de gatinho",etc Ano passado percebi uma melhora me seu repertório : justamente um disco de Herbie Hancock que ela "baixou" por causa da participação de Christina Aguilera.Bem é isto,um grande abraço , continue neste caminho, sucesso!

Michel disse...

Obrigado por ler e postar, Vanderlei.

Espero que as pessoas ao menos tentem se aprofundar na música.

Seja bem-vindo, abraço.
Michel

Anônimo disse...

Bom ser considerado parte de uma "massa de manobra", como é nosso retrato para as gravadoras chega a ser revoltante. Mas o que podemos esperar se a cultura é deixada de lado? Ainda mais no Brasil.
Ainda bem que temos músicos independentes e também pessoas com coragem em outras profissões para reclamar e falar o que pensam.
Mas é a mais pura verdade, quem aparece na "grande" mídia (TV,rádio) é por influência de alguém, ou alguém acredita que o NX-ZERO teria feito sozinho por conta própria.

Artur
Curitiba/PR

Gustavo Pontes disse...

Concordo com o que você escreveu Michel Leme, é muito fácil ouvir o que passa na rádio ou na televisão, muitos hoje em dia tem preguiça de conhecer novas bandas e artistas, e simplesmente ouvem o que a mídia nos joga. Continue com o seu blog, Abraço!

Michel disse...

Obrigado, Artur e Gustavo.
Fiquemos em contato, abração!
Michel